O Brasil possui hoje uma gigantesca diversidade linguística. Em diferentes regiões é possível notar a grande variedade de sotaques, gírias, dentre outras marcas das tradições orais da língua portuguesa, que mesmo regida pelas normas de um funcionalismo oficializado, é capaz de navegar em diferentes mares da sociolinguística, banhados pelas águas multiculturais da sociedade brasileira. Porém, ao direcionarmos esta análise para o patrimônio linguístico dos povos indígenas, nativos destas terras que hoje chamamos de Brasil, esta diversidade de línguas é ampliada exponencialmente e alcança um nível de complexidade que transcende todas as regras gramaticais já elaboradas pelo homem branco, seja na própria língua portuguesa ou qualquer outro idioma.
Atualmente, mais de 150 línguas e dialetos são falados pelas comunidades indígenas do território brasileiro. Apesar da espantosa variedade, estima-se que este número era muito maior antes da chegada dos portugueses, bem como as muitas etnias extintas durante o período colonial, que abriu no tronco dos povos uma ferida que ainda pulsa nos tempos atuais.
Durante o agressivo processo de colonização, a língua dos índios Tupinambá possuía maior densidade em grande extensão da costa atlântica, sendo incorporada e usada por boa parte dos missionários e colonos que eram minoria diante da população indígena nativa destas terras. O uso da língua Tupinambá tornou-se constante e generalizou-se entre os habitantes da colônia, sofrendo algumas transformações e passando a ser chamada de língua Brasílica. Em 1595 o padre e missionário José de Anchieta, percebendo a grande densidade usual da língua Brasílica, escreveu um manuscrito intitulado “A Arte da Gramática da Língua mais Usada na Costa do Brasil”, em uma tentativa de uniformizar as línguas faladas no sistema colonial. Após a publicação deste manuscrito, outras publicações foram realizadas em língua Brasílica, como o primeiro “Catecismo na Língua Brasílica” (1618) e “Vocabulário da Língua Brasílica” (1621), dicionário dos jesuítas que usavam esta padronização linguística nas missões de catequização dos índios.
Já na segunda metade do século XVII, modificada pelo uso frequente dos índios catequizados e dos não-indígenas, a língua Brasílica ficou conhecida como língua Geral, possuindo duas ramificações linguísticas: a Língua Geral Paulista, originária dos índios Tupi da região de São Vicente e alto rio Tietê, muito usada e levada pelos bandeirantes nas explorações sertanejas alcançando assim novos territórios. E a Língua Geral Amazônica, desenvolvida a partir do Tupinambá na região nordeste, sendo usada como instrumento de catequização e ação social portuguesa, ficando conhecida mais tarde como Nheengatu.
O processo de homogeneização da língua no Brasil-colônia acentuou-se a partir do século XVIII, durante o reinado português de D. José I. O ministro Marquês de Pombal, figura importante do Estado português na época, modernizou as reformas do período anterior alterando diversos parâmetros solidificados da colônia, como o monopólio dos jesuítas sobre os métodos de ensino, bem como o uso das ramificações da Língua Geral. A atuação de Pombal na América foi um marco significativo para os povos indígenas e suas múltiplas vertentes linguísticas, até então já desconsideradas pela ação dos jesuítas. Entre os atributos impositivos da “Lei de Diretório dos Índios”, criada pelo marquês em 1757, a proibição do uso da Língua Geral foi determinante para a padronização e uniformidade do idioma falado nas capitanias. Com a criação da primeira rede de ensino sem base católica, junto ao suporte legislativo, a língua portuguesa se expandiu por todas as capitanias da colônia e passou a ser ensinada aos índios e colonos de forma institucional, escrita e com uma gramática definida com caráter oficial, evitando margens para a pluralidade das culturas ameríndias. A língua portuguesa então passou a ser usada em todas as relações sociais, sendo essencial para a manutenção da hegemonia portuguesa sobre a colônia e afirmando assim o caráter etnocêntrico do processo de colonização, já discutido em nosso blog (Confira a matéria completa).
Paulo Wassu, cacique e liderança indígena da etnia Wassu Cocal. Em pajelança realizada na cidade de Ouro Fino/SP |
A progressão das transformações linguísticas no período colonial é mais um atentado ao patrimônio cultural dos povos indígenas, e esmagam um fenômeno peculiar, único e intrigante das culturas ameríndias: o multilinguismo. Dentro de uma única tribo, é possível encontrar índios que falam mais de uma, duas, ou até cinco línguas diferentes, e são capazes de organizar conscientemente e com perfeição a fluência singular de cada uma, sendo motivado pelas relações sociais de sua tribo e demonstrando a habilidade de aprendizado poliglota da espécie humana.
A rica diversidade de línguas indígenas não impede que as tribos se relacionem entre si, e fazem parte do compartilhamento cultural existente entre os povos. As línguas e dialetos, além de carregarem uma forte referência cultural marcante das tradições orais, são instrumento para formação da identidade indígena. Os povos Tukano por exemplo, habitantes das terras ribeirinhas do Rio Uaupés, são exemplos evidentes de multilinguismo. Os homens devem aprender as línguas partilhadas por seu pai, dentro de seu grupo linguístico. No entanto, devem se casar com uma mulher que faça parte de uma família linguística diferente. A maioria dos índios dos povos Tukano são poliglotas, e fortalecem suas culturas através desta relação intercultural entre as etnias do Rio Uaupés.
Com a oficialização da língua portuguesa, aprender as normas e o uso da língua oficial se tornam ferramentas fundamentais para inclusão social do índio à sociedade em que vivemos, já que as leis, documentos, notícias entre outros instrumentos sociais são desenvolvidos na língua portuguesa. A garantia de direitos e o exercício da cidadania prescritos na Constituição também se mostram acessíveis e de maior facilidade quando os povos aprendem a língua oficial. Porém, o papel das instituições escolares no aprendizado indígena da língua portuguesa é amplamente questionado, visto que muitas vezes acabam por ensinar a nova língua da mesma forma que é ensinada a não-indígenas, deixando algumas lacunas que vão contra a preservação cultural das línguas originárias, bem como a própria base cultural dos povos. A análise da relação da escola e aprendizado indígena é delicada, e merece uma discussão acirrada a respeito dos métodos de ensino (para isso indicamos o livro Linguagem e seu Funcionamento, de Eni Orlandi, o qual a autora discute meticulosamente o assunto em um capítulo voltado exclusivamente para a questão indígena). A internet tem possibilitado mudanças neste quadro, visto que agora algumas tribos independem de instituições para adquirir novos conhecimentos quando acessam a rede.
Olivio Jekupé, escritor indígena e ativista da aldeia Krukutu. |
Muitas concepções carregadas de preconceitos em relação ao aprendizado indígena da língua oficial são vinculadas atualmente, e tem como base a desgastada e inválida ideia de que os povos indígenas integram uma parte selvagem e primitiva da sociedade. Como controvérsia, entrevistamos Olívio Jekupé, escritor e ativista da aldeia Krukutu, situada em Parelheiros (SP). Olívio é formado em filosofia na Universidade de São Paulo (USP), e já publicou seis livros em sua carreira. Ele nos conta um pouco sobre a multiculturalidade dos povos indígenas, suas relações com a escrita e a inclusão digital das aldeias. Confira a entrevista aqui!
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Texto: Cauê Colodro.
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